Em tempos de tantas medidas políticas urgentes e fragmentadas, *Medida Provisória*, primeiro filme de Lázaro Ramos como diretor, emerge como um grito de resistência, uma reflexão sobre a identidade, a justiça e a busca por um lugar no mundo. Baseado na peça homônima de Renato Fontana, o filme constrói uma distopia que não parece distante, e ao mesmo tempo, extrapola as fronteiras do medo e da raiva para colocar em jogo as relações humanas em um cenário de violência institucionalizada.
O enredo se passa em um Brasil de futuro próximo, onde uma medida provisória absurda é instaurada: todos os negros do país devem se registrar e deixar o Brasil, ou se sujeitar a serem deslocados para uma espécie de "território próprio", uma segregação racial. O filme, ao adaptar a peça para as telas, acentua o absurdo da proposta com uma sensibilidade muito própria de quem conhece profundamente as feridas do Brasil.
A história se concentra em Antônio (vivido por Alfred Enoch) e sua esposa, a médica Marivalda (Taís Araújo), que vivem o dilema de uma mudança forçada para o exterior, longe da terra natal e das suas raízes. A medida provisória, mesmo que não explicite de forma literal, carrega no seu âmago uma alegoria sobre a histórica e contínua diáspora negra, que nunca teve realmente a chance de repousar sobre sua terra, sua identidade e sua memória.
Em termos cinematográficos, Lázaro Ramos opta por um ritmo envolvente e uma estética que mistura o surreal com o dramático. A fotografia, com tons quentes e escuros, traz um tom de melancolia, mas também de intensidade. As personagens enfrentam o dilema de pertencer e não pertencer ao Brasil, uma sensação que, infelizmente, muitos negros, em diferentes contextos históricos e sociais, já experimentaram em carne e alma.
O filme também não se esquiva de abordar o sistema racista com uma violência disfarçada de “normalidade”. As relações sociais, nesse Brasil distópico, são dominadas pela precariedade de um estado que decide quem pertence a ele e quem não pertence. A sociedade, dividida pela brutalidade das medidas, reflete a própria herança colonial que nunca deixou de existir. O Brasil, com suas múltiplas camadas de exclusão, revela sua face mais crua e ao mesmo tempo, desolada.
O que é notável em *Medida Provisória* é a força de seus personagens centrais. Antônio e Marivalda não são apenas vítimas, mas também são símbolos da luta, da sobrevivência e da resistência. Eles buscam resgatar um espaço que é negado a eles pela própria estrutura social. Em uma das cenas mais tocantes do filme, eles discutem as possibilidades de fuga, de resistência, de adaptação. “Vamos para onde?”, pergunta ela. Ele responde: “Para onde é que a gente sempre foi…?” A questão do exílio, da busca por um lar que nunca foi plenamente conquistado, atravessa o filme com uma intensidade emocional palpável.
Lázaro Ramos não oferece respostas fáceis, mas provoca o espectador a refletir sobre as raízes da nossa história. A "medida provisória" do título é uma metáfora para tudo o que se constrói à margem, para as “leis” que excluem, que tentam apagar a memória e silenciar vozes. O filme se configura, assim, como um convite ao questionamento de quem somos e a quem pertencemos, a um convite para repensar a nossa relação com o outro e com a nossa história.
*Medida Provisória* não é apenas um filme sobre o futuro, mas sobre o que já vivemos, sobre a dor histórica que atravessa gerações, sobre as perguntas ainda sem respostas, sobre o deslocamento — físico e emocional — de uma população que é constantemente desconstruída. A beleza do filme está, então, no modo como ele nos força a olhar para o abismo e perceber que, mesmo no caos da distopia, a luta por um lugar no mundo continua a ser a nossa maior medida provisória.